A História da Casa | Beatriz Carvalho


Tudo começou em 1927, quando um lavrador de 18 anos, vindo de uma aldeia do norte de Portugal, Vila Seca, Distrito de Sever do Vouga, resolveu fazer a América, aqui no Brasil. O navio atracou em Santos. Morou um tempo em São Paulo, outro tanto no Rio de Janeiro, e depois veio para Minas, atraído por suas montanhas que lhe faziam lembrar as montanhas de Vila Seca. Mais precisamente, ele veio morar em Belo Horizonte.

Manuel Antônio de Carvalho nasceu em 21 de março de 1909 e veio a falecer em 27 de setembro de 1996 de Mal de Alzheimer. Este ano, ele completaria 100 anos. Casou-se com Carmen Pinheiro de Carvalho, mineira de Cataguases, e tiveram quatro filhos: Fernando Tadeu, Maria Bernadete, Rosa Maria e Maria Beatriz. Era apaixonado pelo Brasil e, como ele mesmo escreveu em uma estrofe de uma de suas poesias:

“Portugal me deu o ser, o Brasil a felicidade. Sem um eu não posso viver. Do outro sinto saudades”.


Adorava escrever poesias e o fazia em qualquer pedacinho de papel que via pela frente. Era um sonhador e um dos seus sonhos foi esta casa, que começou a construir em 1951.

Naquela época, a cidade estava crescendo e a Prefeitura Municipal de Belo Horizonte resolveu estendê-la além da Avenida do Contorno, criando um bairro nobre e arborizado. O novo bairro levou o nome de Cidade Jardim, e esta casa começou a surgir no lote 16 da Quadra 09.

A casa ficou pronta em 1954 e, durante a obra, muita coisa mudou e aconteceu. O projeto original não tinha o segundo andar, mas, em uma de suas inspeções à obra, ele subiu onde seria o telhado e, quando olhou para a Serra do Curral, disse que não poderia perder aquela visão maravilhosa, e resolveu, então, fazer o segundo andar. Um fato engraçado foi uma conversa que sua esposa, Carminha – como é chamada carinhosamente por todos – ouviu no salão de beleza, quando duas senhoras comentavam sobre a casa, dizendo como poderia uma casa tão grande ter o quarto do bebê tão pequeno e sem ventilação. Elas estavam falando do closet, uma modernidade para a época.

Naquele período, apenas o Fernando e a Bernadete haviam nascido. Fernando, em uma das vezes em que acompanhou o pai à obra, foi esquecido por lá. Ele se perdeu na grandeza da obra, brincando e fazendo arte, e só se deu conta de que o pai não estava muito tempo depois. E o pior: só foram sentir a sua falta mais tarde. Sorte foi que já havia uma casa construída vizinha a esta e a senhora ficou com ele. Tomou banho, comeu e, por pouco, não dormiu por lá.

Esta casa era a sua paixão. Até um coração ele lhe deu, em uma das pedras do muro da frente. Ele a construiu com tudo o que havia de melhor na época. Contava que, para não enxergar a Serra com distorção de imagem, importou todos os vidros e espelhos da Inglaterra. Os painéis portugueses vieram de Sintra, Portugal, em 1951. Todos os painéis foram executados pelo ceramista português Starling, cuja assinatura se encontra no painel de “São Judas Tadeu”, o santo protetor da casa, na varanda da entrada. Os mármores vieram de Carrara, Itália. E as molduras nos tetos foram as que gastaram mais tempo para serem executadas. Os artistas, italianos, ficavam trancados fazendo os moldes e não deixavam que ninguém visse.

No segundo piso, resolveu fazer o salão de festa. Adorava receber, era um grande anfitrião. Das festas que deu em sua casa, as dos casamentos dos filhos foram as mais lindas. O que mais chamava a atenção nessas festas, além da noiva, era a beleza em que a casa ficava, toda decorada.

Vinhos, outra paixão, comprava por ano, para consumo e para presentear os amigos. E os estocava todos na adega, acompanhados das peças de bacalhau que ficavam dependuradas. Por várias vezes, vieram em barris de carvalho e eram engarrafados por ele na adega.

O Natal era uma das épocas de que mais gostava. Fazia questão de fazer as compras (castanhas, nozes, avelãs...) e receber toda a família. Carminha, sua esposa, era filha única, e sua mãe morava com eles. Tinha dois irmãos que também vieram para o Brasil, se casaram e constituíram suas famílias aqui em Belo Horizonte.

Era nessa época também que as parreiras e as figueiras, outras paixões de sua vida, ficavam carregadas. Ai de quem pegasse um fruto! Só ele podia colher. Que delícia! As parreiras cobriam todo o pátio e, em conjunto com o lago de peixes e o viveiro de periquitos coloridos e canários, davam vida, som e alegria ao pátio interno da casa.

No quintal, além do galinheiro suspenso que construiu para a sogra criar galinhas, havia um pomar com um grande abacateiro, limoeiro, laranjeiras, goiabeiras, ameixeiras e mais parreiras, ao longo dos muros, ao redor da casa. Construiu, também, para as meninas, uma Casa de Bonecas, que, infelizmente, não existe mais. Não era uma casinha qualquer, nem poderia. Tinha luz elétrica, água e cinco ambientes: sala mobiliada com um conjunto de sofá (feijão) e poltronas de pés- palitos, prateleiras enfeitadas com lindos bibelôs; havia o espaço dos berços das bonecas; a sala de jantar mobiliada e todo o serviço, pratos, xícaras, tudo era de louça; a cozinha e a varanda. Bons tempos aqueles, e felizes também...

Não há um pedaço desta casa que não o lembre. E quando se foi, há 12 anos, e Carminha por um tempo lá morou sozinha, a casa foi vendida. E, mais uma vez, a paixão pela casa fez a diferença quando Norma de Souza (Norminha, como é chamada) veio conhecê-la. Assim que acabou de correr toda a casa, disse: – “É minha!”.

O medo de todos era de que a pessoa que a comprasse não desse valor a tudo isso e apagasse toda a história e começasse a sua própria. Mas ele soube escolher, de lá onde está, a pessoa certa. Aquela que, de alguma maneira, iria não só preservá-la, mas também mostrá-la, para que outros pudessem conhecê-la e apreciá-la.

Tenho a certeza de que, de onde estiver, vai ficar feliz em ver o que fizeram. Em ver a sua história sendo respeitada por grandes profissionais e admirada por tanta gente.